Revolução Russa: o Poder dos Sovietes contra o estatismo

 

III. Da expropriação dos expropriadores à revolução expropriada

 

Com a derrubada do Czar constitui-se uma situação política de dualidade de poderes. Em Petrogrado, o Soviete de Deputados Operários e Soldados constitui-se no mesmo momento em que o Governo Provisório é formado, sendo este um governo de coalizão entre cadetes, socialistas-revolucionários [1] e mencheviques. Sendo formado a partir da Duma e com uma maioria inicial do Partido dos cadetes, preservava um caráter conservador que logo não só bate de frente aos anseios populares, como não consegue detê-los. Enquanto os membros do Governo Provisório eram articuladores políticos ascendidos ao poder, aproveitando a força dos acontecimentos e das lutas populares, e falavam de uma “revolução democrática”, os trabalhadores russos, por sua vez, não estavam dispostos a se conter com uma revolução tão somente política, de troca de regime. De maneira mais concreta, a guerra mundial que envolvia a Rússia sintetizava o choque de interesses.

O caráter dual da revolução – sua tendência política e sua tendência social – se expressou nesse duplo poder do governo provisório e dos sovietes. No fundo, expressavam – ainda que esta oposição nem sempre se manifestasse com clareza – as duas primeiras causas da derrocada do regime: de um lado a tentativa de prosseguir a guerra; por outro o descontentamento das massas, contrárias a sua continuação. (LEHNING, s.d., p. 89)

Mas não só bastava o fim da guerra, que contabilizava cerca de 10 milhões de mortos e 20 milhões de mutilados em fevereiro de 1917. No campo, a luta toma caráter expropriador, mas também adquire aspectos de violência extremada. Os camponeses, sendo os primeiros a sentirem com mais peso a situação, agiam de maneira enérgica a resolver por si a questão. Praticavam a tomada de terras, expulsando seus proprietários. Por vezes, se tomava o caráter de uma desenfreada revolta com assassinatos ao esmo e destruição de propriedades que poderiam ser utilizadas, não era à toa. Dizia Trotsky (1980, p. 734) que “pela barbárie revolucionária ele extirpava a barbárie medieval”. Arthur Lehning fala que frente à revolta do campesinato, o Governo Provisório tenta, sem sucesso, segurar o movimento.

Em 9 de março o Governo Provisório decidiu reprimir os “distúrbios agrários”. Porém, já não dispunha de poder real para proteger aos proprietários. Tratou então de desviar o movimento que não podia conter, e quis “legalizá-lo”: por lei de 21 de abril, regulou as atribuições dos conselhos. Em seguida, criou um comitê central campesino, encarregado de formular proposições encaminhadas à solução da questão agrária. Não obstante, a resolução definitiva ficava para a Constituinte. (LEHNING, s.d., p. 90)

O Governo Provisório – assim como o Czar já havia feito e não cumprido – assumia compromisso de convocar uma Assembléia Constituinte, mas a empurrava para tentar acumular força e desgastar o movimento revolucionário, sem dar a solução que os trabalhadores exigiam: terra, paz e liberdade. A convocação da Constituinte era uma pauta antiga, mas que no avançar dos acontecimentos seu apelo perderá força entre os trabalhadores, tanto que já em 1918, em sua primeira sessão, foi dissolvida sob o comando do anarquista Anatol Zhelezniakov (AVRICH, 1974, p. 160). Em seu interior o Governo Provisório nunca se mostrou coeso e capaz de levar adiante sua “revolução democrática”. Mudou de composição, de fevereiro a outubro, em pelo menos quatro oportunidades. Nesta inconstância o principal nome virá a ser Kerensky.

Um ponto importante para novo impulso às atividades revolucionárias foi a declaração de anistia geral, onde vários perseguidos e presos políticos retornam ao território russo. Entre estes estão Lênin e Nestor Makhno, o qual retoma suas atividades junto aos camponeses em Goulai-Polé, região da Ucrânia. As agitações se intensificam. O Governo Provisório termina por unir os bolcheviques, socialistas-revolucionários de esquerda (SR-esquerda) e anarquistas enquanto forte bloco de oposição ao governo. A tentativa do governo de cansar e podar os anseios revolucionários da classe trabalhadora russa encontrava direta colaboração da política praticada pelos mencheviques e SR-direita. Sendo que a própria burguesia russa era bastante débil do ponto de vista político, que aliada à condição econômica russa, não lhe gabaritava condições para que pudesse se quer fomentar um projeto para o país de modo a amolecer os ânimos da classe trabalhadora urbana e do campo.

Os acontecimentos que vão da formação do Governo Provisório em fevereiro para a revolução de outubro se sucedem de maneira bastante rápida e explosiva. Os Sovietes, que tinham dado o ar de sua graça em 1905, ressurgem com maior força e imponência, ampliando-se para os camponeses e soldados. A esta altura os Sovietes exerciam um verdadeiro poder, tendo saído de suas instâncias muitas das orientações com as quais os trabalhadores se pautavam. Em maio de 1917 o Soviete de Kronstadt declara ser o único poder local. A política levada a cabo pelo bloco reformista, que no início do Governo Provisório exercia boa influência nos Sovietes (como no de Petrogrado) vai esvaindo-se com o acirramento da luta de classes. Os Comitês de Fábrica também adquirem surpreendente força e expressão de “controle operário” da produção, respondendo aos lockout (boicote) do patronato.

O resumo do quadro das lutas no território russo é de dinâmica e efervescência. Nesse tempo, o Partido Bolchevique vai se consolidar como a principal força organizada revolucionária, estando bem posicionados. Mas não era somente isso, pois ainda que não tivesse presença maior entre os trabalhadores do campo como tinha, por exemplo, os SR-esquerda, saberão levar adiante sua política. Sobre isto, diz Trotsky (1980, p. 728) que os SR-esquerda “transformou-se num reflexo, numa forma instável do bolchevismo rural, numa ponte provisória entre a guerra camponesa e a insurreição proletária”. Abstraindo-se o tom auto-proclamatório, é verdadeiro que os bolcheviques e, em especial a figura de Lênin, ganhavam simpatia e sabiam tirar proveito do quadro que se apresentava. O mesmo Trotsky afirma que a sublevação dos camponeses empurra os bolcheviques ao poder. E daí, “somente após terem conquistado o poder os bolcheviques poderão conquistar o campesinato, transformando a revolução agrária em lei do Estado operário” (Id., 1980, p. 731).

A evolução de suas posições combinada à sabedoria em canalizar para si os elementos mais fecundos do processo histórico da Revolução Russa vai garantir sua direção e hegemonia no movimento. As famosas Teses de Abril, de Lênin, ganha grande significado histórico, pois representa um marco na orientação dos bolcheviques, os direcionando para a atuação nos sovietes. As consignas de “Todo o poder aos Sovietes” e “As fábricas aos operários, a terra aos camponeses” sintetizavam um anseio já posto em prática. Tais consignas já eram, inclusive, propagadas pelos anarquistas. Segundo Paul Avrich, os anarquistas chegaram a sentir-se até mesmo identificados e entusiasmados com as posições defendidas e ganhas por Lênin, no interior do partido bolchevique, a respeito dos Sovietes e dos comitês de fábrica com o controle operário (AVRICH, 1974, p. 133 e 147).

Contando com o fato de ser basicamente a única organização coesa, dotada de uma estrutura organizacional eficiente, além de claro, saber manusear suas táticas e estratégias para a conquista de seus objetivos, os bolcheviques não tardarão para adquirir maioria nos Sovietes de Petrogrado e Moscou (os dois mais expressivos) logo após as Jornadas de Julho.

A chamada Jornadas de Julho, ocorrida nos primeiros dias do mês, consistiu em espontâneas manifestações massivas que tomam Petrogrado incitando ao Comitê Executivo Central dos Sovietes derrubar o Governo Provisório. A base bolchevique se envolve nas manifestações junto com os anarquistas e SR-esquerda, mas os dirigentes bolcheviques avaliam ser prematuro, evitando, assim, um levante armado. Era o ensaio, e dali em diante, a discussão de uma insurreição que colocasse fim ao governo virava ordem do dia. É justamente depois desse fato que Kerensky surge como principal dirigente do Governo Provisório e os socialistas reformistas chegam a obter maioria.

Nessa conjuntura, a derrubada do Governo Provisório já estava certamente desenhada, mas um fato no mês seguinte é que vai ser o estopim, pois será a latente demonstração de força dos trabalhadores e fragilidade do governo: era a tentativa de golpe de Kornilov, um general do antigo regime czarista. Tomando conhecimento disso, Kerensky termina por ter que recorrer à esquerda revolucionária que organiza os destacamentos da Guarda Vermelha, embrião do futuro Exército Vermelho. A tentativa de Kornilov logo será fracassada e sem luta, pois sua própria tropa ao tomar conhecimento de suas pretensões, nega seguir adiante e entrega o general (VOLIN, 1980, p. 145). Agora tínhamos os trabalhadores russos armados e se preparando para lançar uma ofensiva ao próprio Kerensky e o seu Governo Provisório.

O governo ainda convoca em setembro uma Conferência Democrática, mas não obtém o sucesso desejado, não conseguindo segurar o movimento e canalizá-lo para a “legalidade”. Os bolcheviques, por exemplo, tomam parte nela, mas terminam por se retirar ainda em seu início. Teremos então a concentração para a organização de uma insurreição armada que tem seu ponto culminante no dia 25 de outubro de 1917. Nessa ação tivemos a constituição de um Comitê Militar Revolucionário sob a liderança de Trotsky formado por 48 bolcheviques, 4 anarquistas e 14 socialistas revolucionário de esquerda, sendo responsável pela ação que toma o Palácio de Inverno em Petrogrado, quartel de Kerensky e seus ministros (AVRICH, 1967, p. 162). Um pequeno número, mas uma ação preparada e executada no correr de dez dias que, nos dizeres de John Reed, “abalaram o mundo”. Mas não se tratou somente deste fato. Em outros pontos estratégicos da cidade, tropas de guarnição e os marinheiros de Kronstadt tomam o território sem maior resistência e em outros espaços, como Moscou, houve heróica luta. É lançado um comunicado e os bolcheviques passavam a ser os donos da situação através dos chamados Comissários do Povo, inicialmente sendo seus integrantes todos bolcheviques e depois, ficando até meados de 1918, com a participação dos SR-esquerda.

A insurreição de outubro e a constituição de um novo governo, designado com o nome de Conselho de Comissários do Povo, se dava junto à realização do II Congresso Pan-Russo dos Sovietes, da qual na sua abertura os bolcheviques faziam o comunicado. A respeito dos Comissários do Povo

O Conselho de Comissários do Povo, composto, a princípio, só de bolcheviques, levava em si o germe da evolução que conduziria a ditadura de um partido sobre os sovietes. Não se deve associar a instituição dos Comissários do Povo – isto é, a instituição de um poder centralizado – com a proclamação da tomada do poder pelos sovietes. Foi só posteriormente – tendo em conta a realidade – quando essa instituição, expressão da dominação do partido, se converteu em parte integrante da constituição e impossibilitou a formação de um verdadeiro sistema soviético. Com efeito: em 10 de julho de 1918, essa constituição era aprovada pelo IV Congresso Panrusso dos Sovietes, congresso por demais bolchevique, já que a ditadura do Estado havia suprimido todas as outras tendências socialistas. (LEHNING, s.d., p. 122)

Após a insurreição de outubro os dilemas da Revolução Russa serão mais acentuados e decisivos. Frente a estes dilemas, e muitas vezes acobertados por eles, a revolução proletária será “expropriada” e apresentada como produto bolchevique que pretensiosamente relega a si o papel histórico de falar por toda a classe trabalhadora russa e, até mesmo, do mundo inteiro. Os amplos poderes dados ao Comitê Executivo Central dos Sovietes dado pela constituição de 1918, invertendo a própria lógica dos Sovietes de construção pela base (baixo pra cima), e a formação da III Internacional (março de 1919) para formar os PC´s em todo mundo, estando organizada nos moldes de uma Meca de todo o movimento revolucionário mundial, são dois exemplos concretos e que apontavam a opção bolchevique pelo monolitismo político levado à revolução por suas concepções teóricas.

A tônica da centralização de poder, do “comunismo de guerra” e da defesa e expansão da revolução (internacionalização) serão os principais debates. O primeiro, vai significar um esvaziamento do poder real a ser exercido pelos Sovietes, gradativamente transformados em espaços de legitimação e auxiliares do poder bolchevique, e não, de construtores da política própria dos trabalhadores. A política de “comunismo de guerra” vai implicar não só maior controle da economia (tendo como uma das medidas o fim dos comitês de fábricas em favor de estruturas sindicais atreladas ao Estado), sendo o início da disseminação de uma ideologia de sacrifícios e trabalhos penosos em “nome da revolução” e adoção de medidas “liberalizantes” como a NEP (Nova Política Econômica) de 1922, que incluía métodos tayloristas na corrida pelo incremento da produtividade. A terceira e última questão resume todas as anteriores, é a questão de fundo, põe de maneira mais clara o debate que pretendemos fazer a seguir: a ideologia estatista como ante-sala da contra-revolução.

 

Nota

[1] O Partido Socialista Revolucionário (SR) com o Governo Provisório irá rachar em uma ala de esquerda outra de direita. O SR-direita tomará parte, junto com os mencheviques, no governo de coalizão. Por sua vez, o SR-esquerda estará junto a bolcheviques e anarquistas na oposição revolucionária ao governo.

 


On to IV. O estatismo como ante-sala da contra-revolução

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Source: Coletivo Anarquista Zumbi dos Palmares

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