Revolução Russa: o Poder dos Sovietes contra o estatismo

 

I. A Rússia imperial e as fissuras no regime de sabre

 

O território do Império de Todas as Russias era marcado pela miséria, estando baseado em uma economia agrária que sustentava um Estado burocrático e policialesco. Abrigava em si vários povos, com seus costumes e línguas, tal como eslavos, ucranianos, judeus e etc., mas que ficavam submetidos a uma supremacia política por parte dos grão-russos, etnia que era minoria na população. A situação do campo, que abrigava os vários povos “colonizados”, estava em profundo contraste com a ostentação de riqueza dos benfeitores do sistema e a erudição dos poucos que tinham acesso à leitura e as artes. Entrava no século XX ainda como um país Imperial em um vasto território do globo terrestre no regime dinástico da família Romanov, com o Czar reinando absoluto e ainda tendo uma imagem bastante estimada pela população pobre e camponesa, maioria absoluta no país. O Czar era o “paizinho”, que a despeito de toda a exploração e opressão exercida nas pancadas de sabre de seus algozes parecia estar sempre resguardada a uma posição de salvador perante um povo faminto e calejado por um trabalho esgotante.

A Rússia, terra onde o revolucionário anarquista Bakunin nasceu, em termos de tradição de luta contra o regime absolutista, preservava no imaginário o referencial das violentas revoltas camponesas no século XVII e XVIII de Stenka Razin e Pugatchev. Durante largo tempo as principais atividades de oposição ao regime possuíam decididos traços de atos terroristas e conspiratórios. Atos que marcam com sangue seus opositores, mas que pouco refletem no lado explorado e oprimido, de maneira a apresentar uma alternativa ao regime czarista. Eram atos que tinham o fim em si mesmo. Nessa tradição de ação terrorista e seletiva, o denominado grupo Vontade do Povo (Narodnaia Volia) chegou a assassinar o czar Alexandre II em 1881.

No entanto, esse viés não se constitui por acaso ou por simples opção política. Os meios de expressão e de organização de uma luta aberta e de massa eram quase que nulos. O tom era dado pela repressão e pela falta das chamadas liberdades civis, estas tão propagadas no mundo ocidental desde a Revolução Francesa. Mas, por outro lado, a Rússia também conheceu certa penetração intelectual. Sua casta erudita não estava atrás da européia e será justamente no seio dessa intelectualidade (no decorrer do regime de Nicolau I, 1825-55), formada por um público jovem que, em certa medida, se “emancipa” filosoficamente do czarismo, que nascem movimentações mais contundentes, organizadas em oposição ao regime do garrote e do chicote. O movimento Dezembrista (1825) e a formação do que se chamou de filosofia niilista, são alguns exemplos de repulsa ao regime, seja de maneira mais incisiva, seja mais no plano das idéias. Todas tinham em comum partir, justamente, de camadas mais altas.

Junto a essa movimentação, numa camada intelectual instigada com descobertas científicas e discussões filosóficas, acrescenta-se o fato de o solo russo, como conseqüência da própria concorrência com os Estados ocidentais, começar a manifestar imperiosas necessidades de incremento na economia do país, despertadas ainda no império de Nicolau I (que morre no final da Guerra da Criméia, 1854-55). Como exemplo de medida para o avanço da economia russa, de maneira até um pouco caricatural, fazendo a união entre a modernização da economia com as extravagâncias de um regime aristocrático, temos a construção da ferrovia que unia Moscou e São Petersburgo (que viria a se chamar Petrogrado em 1914) em uma linha reta, mesmo a despeito das condições do solo da região para tal empreitada (VOLIN, 1980, p. 33).

Ocorre que dentro de um quadro de pressão econômica e política em um capitalismo que ganhava o mundo e que exigia um padrão elevado de produção, aliado a um sempre presente descontentamento de uma grande massa de miseráveis que ganhavam o apoio pontual de uma camada de intelectuais que pressionavam por mudanças, Alexandre II (filho de Nicolau I) inicia a partir de 1860 algumas reformas. A mais marcante delas foi a abolição da escravidão em 1861, mas a verdade é que as tais reformas eram bastante limitadas e simplórias. A própria abolição da escravidão reservou uma parcela irrisória de terra para os camponeses pobres e não os livrou de pesados impostos ao Estado e de indenização aos antigos proprietários. Mas elas tinham uma serventia política para o czarismo, pois a situação do país estava tão caótica que o fazia avaliar nestas medidas uma imperiosa necessidade para salvaguardar o regime e seus privilégios. O Czar chegou a afirmar que “mais vale outorgar a liberdade de cima para baixo que esperar que venham a tomá-la de baixo para cima” (Id., 1980, p. 38).

Aqui podemos localizar de maneira mais clara o início de processo de constituição da classe operária na Rússia, ainda muito marcada por uma economia agrária e de relações de produção não-capitalistas. Todo o processo de formação da classe trabalhadora industrial na Rússia se dá de maneira bastante particular, pois em seu berço as nascentes indústrias não somente recrutavam sua mão-de-obra no campesinato, mas estes mesmos trabalhadores por muito tempo praticavam uma jornada dupla de trabalho na cidade e no campo, que era para onde voltavam preservando ainda por um tempo o vínculo social e cultural (Id., 1980, p. 34).

Quando da entrada do século XX, um verdadeiro salto industrial era notório e dava às cidades russas, onde a industrialização se fazia presente, outra feição e uma classe operária propriamente formada. Calculava-se que em 1905 existiam 3 milhões de operários na Rússia, estes, juntos a um contingente de cerca de 150 milhões de camponeses pobres poderiam ser considerados irrisórios, entretanto, ganhavam terreno como elemento de expressão política por mudanças já que se apresentavam estrategicamente bem posicionados na contraditória e turbulenta crise que se arrastava o regime czarista.

 


On to II. Do Domingo Sangrento ao poder dos Sovietes

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Source: Coletivo Anarquista Zumbi dos Palmares

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