Polêmica entre Malatesta e Makhno em torno da "Plataforma"


 

Um Projeto de Organização Anarquista - Errico Malatesta (1927)

Resposta a “Um Projeto de Organização Anarquista” - Nestor Makhno (1928)

Resposta de Malatesta a Nestor Makhno- Errico Malatesta (1929)

A Propósito da "Responsabilidade Colectiva" - Errico Malatesta (1930)



 

Um Projeto de Organização Anarquista

Errico Malatesta (1927)

Recentemente, li um panfleto francês intitulado ‘Plataforma Organizacional da união Geral dos Anarquistas (Projeto), que me chegou às mãos por acaso. Sabe-se que, hoje, na Itália [1927], os escritos não-fascistas não podem circular livremente.

É um projeto de organização anarquista, publicado sob o nome de um ‘Grupo de Anarquistas Russos no exterior, e parece-me ser particularmente dirigido aos companheiros russos. Porém, trata de questões de igual interesse para todos os anarquistas, e, é claro, por ser escrito em francês, busca a adesão de companheiros de todos os países. De qualquer forma, é valido examiná-lo, tanto para os russos como para os demais, se a proposta está de acordo com os princípios anarquistas e se sua realização servir verdadeiramente à causa do anarquismo. Os motivos dos companheiros são excelentes. Eles lamentam o fato de que até agora os anarquistas não tiveram influência nos eventos políticos e sociais em proporção aos valores teóricos e práticos de sua doutrina, tampouco em seu número, sua coragem e seu espírito de sacrifício; e acreditam que a razão principal desse relativo fracasso é a falta de uma organização grande, séria e ativa.

Até aqui, em princípio, estou de acordo. A organização nada mais é do que cooperação e solidariedade na prática, uma condição natural e necessária para a vida social. É um fato inevitável, que se impõe a todos, numa sociedade humana em geral ou em qualquer grupo de pessoas unidas por um objetivo comum. Os seres humanos não podem viver isolados, na verdade não podem sequer tornar-se verdadeiros seres humanos e satisfazer suas necessidades morais e materiais a não ser como parte da sociedade e com a cooperação de seus semelhantes. É, pois, inevitável que todos os aqueles que não se organizam livremente, seja por que não podem ou porque não o consideram necessário, devem submeter-se à organização estabelecida por outros, que geralmente formam uma classe ou um grupo dirigente, cuja finalidade é oprimi-los e explorá-los.

A milenar opressão das massas por um número pequeno de privilegiados tem sempre sido o resultado da incapacidade, da maioria dos indivíduos, em chegar a um acordo e se organizar com base na comunidade de interesses e de sentimentos com os outros trabalhadores, para produzir, para consumir e, eventualmente, defender-se contra aqueles que procuram explorá-los e oprimi-los. O anarquismo quer resolver esse estado de coisas com seu principio básico de organização livre, fundada e gerada mediante o livre acordo de seus membros, sem qualquer espécie de autoridade; ou seja, sem que ninguém tenha o direito de impor sua vontade. É, pois, óbvio que os anarquistas procurem aplicar em sua vida privada e sua vida política esse mesmo princípio sobre o qual acreditam que toda a sociedade humana deveria se basear.

A julgar por certas polêmicas, parece que existem anarquistas que rejeitam qualquer forma de organização. Mas, de fato, as inumeráveis discussões sobre este assunto, mesmo quando são obscurecidas por questões de linguagem ou envenenadas por questões pessoais, referem-se às formas e não ao princípio de organização. Tanto é assim, que mesmo aqueles companheiros mais hostis à organização, quando querem realmente fazer alguma coisa, organizam-se como os demais e até de maneira mais efetiva. Tudo não passa de uma questão de aplicação.

Portanto, eu apenas posso observar com simpatia a iniciativa dos companheiros russos, por estar convencido de que uma organização mais geral, mais unida, mais duradoura do que qualquer outra até aqui organizada pelos anarquistas - mesmo se ela não conseguiu abolir todos os erros e deficiências que são talvez inevitáveis num movimento como o nosso, que avança no meio da incompreensão, indiferença e mesmo a hostilidade da maioria - seria inegavelmente um elemento importante de força e de sucesso, um poderoso meio para fazer valer nossas idéias.

Eu acredito sobretudo que é necessário e urgente que os anarquistas se organizem para influenciar o rumo que seguem as massas na sua luta pelas reformas e pela emancipação. Hoje, a maior força de transformação social é o movimento operário (movimento sindical) e de sua direção depende, em grande parte, o curso que tomarão os eventos e o objetivo da próxima revolução. Nas organizações que cria para a defesa de seus interesses, os trabalhadores adquirem a consciência da exploração que sofrem e do antagonismo que os separam dos patrões, começam a desejar uma vida melhor, acostumam-se à uma luta coletiva e à solidariedade e conquistam as melhorias compatíveis com o regime capitalista e estatal. Em seguida, virá a revolução ou a contra-revolução. Os anarquistas devem reconhecer a utilidade e a importância do movimento sindical; apoiar seu desenvolvimento e fazer dele uma das alavancas de sua ação, esforçando-se para que o sindicalismo coopere com as outras forças progressistas na revolução social que suprime as classes, realiza a liberdade, a igualdade, a paz e a solidariedade. Mas seria uma funesta ilusão acreditar, como muitos o fazem, que o movimento operário levará, por si mesmo, em virtude de sua natureza, à revolução. Pelo contrário, todos os movimentos baseados em interesses materiais e imediatos (e um vasto movimento operário não pode ter outras bases) carecem do estímulo, do impulso, da ação conjunta de pessoas que lutam e se sacrificam por um ideal a realizar. Sem essa alavanca, todo movimento tende fatalmente a se adaptar às circunstâncias, engendrando um espírito conservador e o temor das mudanças naqueles que conseguirem melhores condições. Freqüentemente, surgem novas classes privilegiadas que se esforçam para apoiar e consolidar o estado de coisas que nós queremos destruir.

Disso decorre a urgente necessidade de organizações especificamente anarquistas que, dentro e fora dos sindicatos, lutem pela integral realização do anarquismo e procurem esterilizar todos os germes de corrupção e reação. Mas é óbvio que para atingir seus fins, as organizações anarquistas devem, em sua constituição e funcionamento, manter-se em harmonia com os princípios da anarquia. É necessário que não estejam sequer minimamente impregnadas do espírito autoritário, que saibam conciliar a ação livre dos indivíduos com a necessidade e a prazer da cooperação, que desenvolvam a consciência e a iniciativa de seus membros sejam um ativo instrumento educativo no ambiente em que agem, e de uma preparação moral e material para o futuro que desejamos.

O projeto em questão satisfaz essas exigências? Creio que não. Ao invés de estimular nos anarquistas um maior desejo por organização, parece deliberadamente reforçar o preconceito de muitos companheiros que acreditam que organizar-se significa submeter-se a chefes, aderir a um organismo autoritário e centralizador, que sufoca toda livre iniciativa. E, de fato, o projeto contém precisamente essas propostas que alguns, contra a evidência e apesar de nosso protestos, insistem em atribuir a todos os anarquistas qualificados de organizadores.

Examinemos esse projeto. Antes de tudo, parece-me uma idéia falsa (em todo caso, irrealizável) a de reunir todos os anarquistas numa “União Geral” – isto é, como diz o Projeto, UMA SÓ coletividade revolucionária ativa.

Nós, anarquistas, podemos dizer que somos todos do mesmo partido, se pela palavra "partido" entendermos o conjunto dos que estão DO MESMO LADO, que têm as mesmas aspirações gerais, que de uma maneira ou de outra lutam pelo mesmo fim contra adversários e inimigos comuns. Mas isso não significa que seja possível - ou mesmo desejável - estarmos todos reunidos numa só e mesma associação determinada.

Os ambientes e condições de luta diferem muito; os modos possíveis de ação entre os quais se dividem as preferências, as diversidade de temperamentos e as incompatibilidades pessoais para que uma União Geral, mesmo aceita seriamente, não se torne um obstáculo para as atividades individuais, ao invés de um meio para coordenar e totalizar os esforços de todos.

Como, por exemplo, organizar da mesma forma e com o mesmo pessoal uma associação pública para a propaganda e agitação entre as massas, e uma sociedade secreta, forçada pelas condições políticas em que atua, a esconder do inimigo seus planos, métodos e militantes? Como poderiam os educacionistas, que acreditam que a propaganda e o exemplo bastam para a transformação gradual de indivíduos e portanto da sociedade, adotar as mesmas táticas que os insurrecionalistas, convencidos da necessidade de destruir pela violência um estado de coisas que é mantido pela violência, e de criar, contra a violência dos opressores, as condições necessárias para o livre exercício da propaganda e a aplicação prática dos ideais? E como manter juntas pessoas que, por motivos particulares, não se entendem e, no entanto, podem igualmente ser militantes úteis para o anarquismo?

Além disso, os autores do Projeto declaram "inepta" a idéia de criar uma organização reunindo todos os representantes das diversas tendências do anarquismo. Tal organização, eles dizem, "incorporando elementos teórica e praticamente heterogêneos, não seria mais do que um ajuntamento mecânico de indivíduos que têm concepções diferentes sobre todas as questões relativas ao movimento anarquista; esse ajuntamento se desagregaria tão logo eles fossem testados pelos fatos e pela vida real".

Muito bem! Mas então, se reconhecem a existência de anarquistas de outras tendências, eles deverão deixar-lhes o direito de se organizar como quiserem e de trabalhar pela anarquia da maneira que julgarem melhor. Ou pretenderão excluir do anarquismo, excomungar todos os que não aceitam seu programa? Eles dizem que querem "reunir numa só organização" todos os elementos sadios do movimento libertário. Naturalmente, eles tendem a julgar sadios apenas os que pensam como eles. Então, que farão com os elementos que não são sadios?

Certamente, entre aqueles que se dizem anarquistas existem, como em toda coletividade humana, elementos de diferentes valores. E, o que é pior, existem alguns que, em nome do anarquismo, difundem idéias que muito pouco tem a ver com ele. Mas como evitar isso? ´A verdade anarquista’ não pode e não deve depender das decisões das maiorias reais ou fictícias. Somente é necessário - e suficiente – que todos tenham e exerçam o mais amplo direito de livre crítica e que cada um possa manter suas próprias idéias e escolher seus próprios companheiros. Em última instância, os fatos decidirão quem está certo.

Abandonemos, portanto, a idéia de reunir todos numa única organização, consideremos essa União Geral que os russos nos propõem como o que realmente será: a união de um grupo de anarquistas, e veremos se o modelo organizacional proposto se adapta aos métodos e princípios anarquistas e se ele pode ajudar para o triunfo do anarquismo. Mais uma vez, parece-me que não. Não estou pondo em dúvida o sincero anarquismo dos companheiros russos. Eles querem realizar o comunismo anarquista e procuram fazê-lo o mais rápido possível. Mas não basta apenas querer, é necessário utilizar os meios convenientes; assim, para ir a um determinado lugar deve-se tomar o caminho certo. Ora, sendo a organização proposta tipicamente autoritária, não só não facilitará a vitória do comunismo anarquista, como falsificará o espírito anarquista e resultará no contrário do que esperam seus organizadores.

Efetivamente, essa União Geral consistirá de tantas organizações parciais que serão necessários secretariados para dirigir ideologicamente a tarefas políticas e técnicas, um comitê executivo que encaminhe as decisões tomadas pela União e “dirija” a ideologia e a organização dos grupos em conformidade com a estratégia geral da União.

Isto é anarquismo? Na minha opinião, isto é um governo e uma igreja. É verdade que não há polícia nem baionetas, nem o fiel rebanho disposto a aceitar a ideologia imposta. Mas isso significa apenas que tal governo seria impotente e impossível, e que tal igreja seria uma fonte de heresias e cisões. O espírito e a tendência permanecendo autoritários, o efeito educativo será antianarquista.

Vejam: "O órgão executivo do movimento libertário geral - a união anarquista – adota o princípio da responsabilidade coletiva; toda a União será responsável pela atividade revolucionária e política de cada membro; e cada membro será responsável pela atividade revolucionária e política da união." E, depois desta absoluta negação de toda independência individual, de toda liberdade de iniciativa e de ação, seus porta-vozes, lembrando-se de que são anarquistas, autodenominam-se federalistas e bradam contra a centralização, cujos resultados inevitáveis, dizem eles, "são a escravização e a mecanização da vida da sociedade e dos partidos."

Mas se a união é responsável pelo que cada membro faz, como pode deixar, a cada membro em particular e aos vários grupos, a liberdade de aplicar o programa comum da maneira que julgarem a melhor? Como alguém pode ser responsável por uma ação que não pode impedi-la? Portanto, a união e, em seu nome, o Comitê Executivo têm de monitorar todos os membros individuais e ordenar-lhes o que fazer e não fazer. E como a desaprovação depois do fato não atenua a responsabilidade previamente aceita, ninguém poderá fazer qualquer coisa antes de ter obtido a permissão do comitê. Por outro lado, quem assumiria a responsabilidade pelas ações de uma coletividade sem saber o que ela fará e como impedi-la de fazer o que ele desaprova?

Além disso, os autores do Projeto dizem que é a União que propõe e dispõe. Mas, quando se referem à vontade da União, eles se referem também à vontade de todos os membros? Se sim, para a União funcionar seria necessário que todos os membros sempre tivessem a mesma opinião sobre todas as questões. Ora, é normal que todos estejam de acordo com os princípios gerais e fundamentais, sem o que não estariam e permaneceriam unidos, mas isso não permite supor que seres pensantes terão sempre a mesma opinião sobre o que precisa ser feito em diferentes circunstâncias e quanto à escolha de pessoas responsáveis pelas tarefas de dirigir e executar.

Na realidade, como resulta do próprio texto do Projeto, pela vontade da União entende-se apenas a vontade da maioria, expressa através de congressos que nomeiam e controlam o Comitê Executivo e decidem sobre todas as questões importantes. Os congressos seriam compostos por representantes eleitos pela maioria dos membros em cada grupo, e esses representantes decidiriam o que fazer, sempre por maioria de votos. Então, no melhor dos casos, as decisões seriam tomadas pela maioria da maioria, e isso poderia facilmente, em particular quando as opiniões opostas são mais do que duas, representar apenas uma minoria.

Aliás, isso poderia indicar que, nas condições em que os anarquistas vivem e lutam, seus congressos são ainda menos representativos do que os parlamentos burgueses. E seu controle sobre os órgãos executivos, se estes possuem poderes autoritários, raramente é oportuno e eficaz. Na prática, os congressos anarquistas são assistidos por aqueles que desejam e podem, que possuem dinheiro suficiente e não estão impedidos por medidas policiais. Entre os presentes, há os que representam apenas a si próprios ou um número pequeno de amigos, como aqueles que representam as opiniões e desejos de um numeroso coletivo. Apesar das precauções tomadas contra os traidores e espiões – e também por causa dessas precauções – é impossível fazer uma verificação séria dos representantes e do valor de seus mandatos.

De toda maneira, estamos em pleno sistema majoritário, em pleno parlamentarismo. Sabe-se que os anarquistas não aceitam o governo da maioria (democracia), nem o governo de poucos (aristocracia, oligarquia, ditadura de classe ou de partido), tampouco o de um indivíduo (autocracia, monarquia ou ditadura pessoal).

Os anarquistas criticaram milhares de vezes o governo dito da maioria, que na prática sempre leva à dominação de uma pequena maioria. Precisamos repetir tudo isso para nossos companheiros russos?

Alguns anarquistas reconhecem que, na vida em comum, é necessário que a minoria acate a opinião da maioria. Quando há evidente necessidade ou utilidade de fazer uma coisa e isso requer a concordância de todos, a minoria deve respeitar a vontade da maioria. Usualmente, no interesse da convivência pacífica e sob condições de igualdade, é necessário que todos estejam animados por um espírito de concórdia, tolerância e compromisso. Mas tal adaptação deve ser recíproca, voluntária e derivar da consciência da necessidade de não paralisar a vida social por mera teimosia. É um ideal que, talvez, na prática diária da vida social, será difícil de realizar totalmente. Mas um grupo humano está tanto mais próximo da anarquia quanto mais livre e espontâneo é o acordo, imposto somente pela natureza das coisas, entre minoria e maioria.

Portanto, se os anarquistas negam à maioria o direito de governar na sociedade humana em geral - onde os indivíduos estão obrigados a aceitar certas restrições, porque não podem se isolar sem renunciar às condições da vida humana - e se querem que tudo seja feito pelo livre acordo entre todos, como poderiam aceitar o governo da maioria em suas associações essencialmente livres e voluntárias e declarar que se submeterão às decisões da maioria antes mesmo de saber quais serão?

Que a anarquia, organização livre e sem o domínio da maioria sobre a minoria, e vice-versa, seja qualificada, pelos que não são anarquistas, de utopia irrealizável ou realizável apenas num futuro distante, é compreensível. Mas é inconcebível que os mesmos que professam idéias anarquistas e querem realizar a anarquia, ou no mínimo antecipar sua realização – hoje, em vez de amanhã – reneguem os princípios básicos do anarquismo na organização com a qual se propõem a lutar pela sua vitória.

Uma organização anarquista deve, penso eu, ser fundada em bases muito diferentes das propostas pelos companheiros russos. Total autonomia, total independência e, portanto, total responsabilidade de indivíduos e grupos; livre acordo entre os que acreditam ser útil unirem-se para cooperar na obra comum; dever moral de manter os compromissos assumidos e de nada fazer em contradição com o programa aceito. Sobre estas bases, adotem-se as formas práticas, os instrumentos aptos para dar vida à organização: grupos, federações, encontros, congressos, comitês de correspondência etc. Mas tudo isso deve ser feito livremente, de forma que o pensamento e a iniciativa dos indivíduos não sejam obstruídos, e apenas para dar maior eficácia às tentativas que, isoladas, seriam impossíveis ou inoperantes.

Assim, os congressos, numa organização anarquista, mesmo sofrendo enquanto corpos representativos, de todas as imperfeições já mencionadas, estão isentos de todo autoritarismo, porque eles não fazem a lei; não impõem suas resoluções aos outros. Servem para manter e ampliar as relações pessoais entre os companheiros mais ativos, para resumir e incentivar o estudo de programas e meios de ação; para informar sobre a situação das várias regiões e a ação mais urgente em cada uma delas; para formular as diversas opiniões correntes entre os anarquistas e fazer uma espécie de estatística delas, e suas decisões não são regras obrigatórias mas sugestões, recomendações, propostas que serão submetidas a todos os interessados, não devem ser obrigatórias exceto para aqueles que as aceitarem e enquanto as aceitarem. Os órgãos administrativos que nomeiam - comissão de correspondência etc. - não têm poder de direção, não tomam iniciativas a não ser em nome daqueles que pedem e aprovam tais iniciativas, e não têm autoridade para impor suas próprias visões, que podem certamente manter e propagar enquanto grupos de companheiros, mas não podem apresentar como opinião oficial da organização. Publicam as resoluções dos congressos, as opiniões e propostas que os grupos e indivíduos lhes comunicaram; facilitam as relações entre os grupos e a cooperação entre aqueles que concordam com as várias iniciativas, deixando a cada um a liberdade para se corresponder com quem quiser ou usar os serviços de outros comitês nomeados pelos agrupamentos específicos. Numa organização anarquista, os membros individuais podem expressar qualquer opinião e usar qualquer tática que não esteja em contradição com os princípios aceitos e não impeça a atividade dos outros. Em todo caso, uma organização permanecerá enquanto os motivos para a união forem mais fortes do que os motivos para a separação. Senão, a organização se dissolve e é substituída por grupos mais homogêneos. Da duração, da permanência da organização depende o sucesso obtido na longa luta que devemos sustentar. Por outro lado, é toda instituição pretende durar indefinidamente. Mas a duração de uma organização libertária deve ser conseqüência da afinidade espiritual de seus membros e das possibilidades de adaptação de sua constituição às contínuas mudanças das circunstâncias. Quando deixar de ser capaz de efetuar uma tarefa útil, é melhor que ela morra.

Os companheiros russos pensam, talvez, que tal organização, como eu concebo e tem sido realizada, mais ou menos satisfatoriamente, em várias épocas, não é muito eficiente. Eu compreendo. Esses companheiros estão obcecados pelo sucesso dos bolcheviques em seu país; como os bolcheviques, gostariam de reunir os anarquistas numa espécie de exército disciplinado que, sob a direção ideológica e prática de alguns chefes, marcharia compacto para o ataque dos regimes existentes, e que, alcançada a vitória material, dirigiria a construção da nova sociedade. E, talvez, com tal sistema, admitindo-se que os anarquistas se adaptassem a ele e se os líderes fossem homens geniais, nossa força material seria maior. Mas quais seriam os resultados? O que seria do socialismo e do comunismo na Rússia, se não fosse o anarquismo? Esses companheiros estão ansiosos pelo sucesso, nós também. Mas, para viver e vencer, não precisamos abandonar as razões de nossa vida e deformar o caráter da vitória eventual. Nós queremos lutar e vencer, mas como anarquistas e para a anarquia.

E. Malatesta
Il Risveglio (Genova), outubro de 1927.

 


Resposta a “Um Projeto de Organização Anarquista”

Nestor Makhno (1928)

Querido companheiro Malatesta:

Li sua resposta ao projeto intitulado "Plataforma Organizacional de uma União Geral de Anarquistas", publicado pelo grupo de anarquistas Russos no exterior. Minha impressão é que você não compreendeu o projeto pela 'Plataforma'. Ou, então, sua recusa em reconhecer a responsabilidade coletiva na ação revolucionária e a função dirigente que os anarquistas devem assumir decorre de uma profunda convicção sobre o anarquismo que o leva a desconsiderar aquele princípio de responsabilidade.

Todavia, há um princípio fundamental que orienta nossa compreensão da idéia anarquista e nossa determinação de que ela deve penetrar nas massas, com seu espírito de sacrifício. É graças a ele que um homem pode escolher o caminho revolucionário, ignorando os outros. Sem isso, nenhum revolucionário teria a força, a vontade e a inteligência necessárias para agüentar o espetáculo da miséria social e tampouco lutaria contra isso. É com a inspiração da responsabilidade coletiva que os revolucionários de todas as épocas e tendências têm unido suas forças; é nela que eles baseiam suas esperanças de que as revoltas parciais, que abriram o caminho para os oprimidos, não foram em vão, de que os explorados entenderão suas aspirações, extrairiam delas as lições adequadas para a época e as usariam para abrir novos caminhos para sua emancipação.

Você mesmo, querido Malatesta, admite a responsabilidade individual do revolucionário anarquista. E mais, você a apoiou em toda sua vida como militante. Pelo menos, foi assim que eu entendi seus escritos sobre o anarquismo. Mas você nega a necessidade e utilidade da responsabilidade coletiva, embora reconheça as tendências e ações do movimento anarquista como um todo. A responsabilidade coletiva o assusta; então, você a rejeita.

Mesmo tendo adquirido o hábito de encarar frontalmente as realidades de nosso movimento, admito que sua rejeição da responsabilidade coletiva me desorienta, não apenas pela falta de bases mas por ser perigosa para a revolução social, cuja experiência você deveria levar em conta, quando se tornar necessária uma luta decisiva contra todos os nossos inimigos de uma só vez. Então, minha experiência das batalhas revolucionárias do passado me leva a acreditar que, não importa qual seja a sucessão dos eventos revolucionários, alguém precisa assumir a direção ideológica e dar as ordens táticas. Isto significa que apenas um espírito coletivo, sadio e devotado ao anarquismo pode atender às exigências do momento, expressando uma vontade coletivamente responsável. Nenhum de nós tem o direito de escamotear tal responsabilidade. Pelo contrário, se foi até agora ignorada, nas fileiras anarquistas, precisa se tornar já, para nós, anarquistas comunistas, um artigo de nosso programa teórico e prático.

Apenas o espírito coletivo e a responsabilidade coletiva de seus militantes permitirão ao anarquismo moderno eliminar de seus círculos a idéia, historicamente falsa, de que o anarquismo não pode ser um guia – seja ideologicamente, seja na prática – para a massa trabalhadora num período revolucionário, e portanto não poderia exigir a responsabilidade total.

Não irei, nesta carta, alongar-me sobre as outras partes de seu artigo contra o projeto de Plataforma, no qual você vê `uma igreja e uma autoridade sem polícia'. Expressarei apenas minha surpresa por vê-lo usar tal argumento no curso de sua crítica. Tenho pensado muito a respeito e não posso aceitar sua opinião. Não, você não está certo. E porque não estou de acordo com sua resposta, usando argumentos demasiado levianos, acredito que tenho o direito de lhe perguntar:

  1. O anarquismo deve assumir alguma responsabilidade na luta dos trabalhadores contra seus opressores, o capitalismo, e o Estado? Se não, você pode dizer por quê? Se sim, devem os anarquistas agir para que seu movimento exerça influência nas mesmas bases que a ordem social existente?
  2. Pode o anarquismo, no estado atual de desorganização em que se encontra, exercer qualquer influência, ideológica ou prática, em assuntos sociais e na luta da classe operária?
  3. Quais são os meios que o anarquismo deve adotar fora da revolução e quais são os meios que ele pode utilizar para provar e afirmar seus conceitos construtivos?
  4. O anarquismo precisa de organizações permanentes, intimamente ligadas entre si pela unidade de objetivos e de ação para alcançá-los?
  5. O que querem os anarquistas dizer com ´instituições para serem estabelecidas´, numa visão que garanta o livre desenvolvimento da sociedade?
  6. Pode o anarquismo, na sociedade comunista que concebe, passar sem instituições sociais? Se sim, como? Se não, quais deveriam reconhecer e usar, e com que nomes levá-las a existir? Devem os anarquistas assumir uma função de liderança e, portanto, de responsabilidade, ou devem se limitar a ser auxiliares irresponsáveis?

Sua resposta, querido Malatesta, é de grande importância para mim por dois motivos. Permitirá que eu compreenda melhor sua maneira de ver as questões pertinentes à organização das forças anarquistas e ao movimento em geral. E, sejamos francos, sua opinião é aceita imediatamente pela maioria dos anarquistas e simpatizantes, sem discussão, como a de um militante experiente que tem, ao longo de toda sua vida, permanecido firme em sua fidelidade ao ideal libertário. Portanto, dependerá em certa medida de sua atitude, seja um amplo estudo das urgentes questões que esta época propõe ao nosso movimento, seja uma desaceleração ou um novo salto adiante. Permanecendo na estagnação do passado e do presente, nosso movimento não ganhará nada. Pelo contrário, é vital que, na visão dos eventos que surgem diante de nós, ele deva ter toda chance de cumprir suas funções.

Eu dou muita importância a sua resposta.

Saudações Revolucionárias

Nestor Makhno

 


Resposta de Malatesta a Nestor Makhno

Errico Malatesta

 

Querido companheiro:

Finalmente, recebi a carta que você me enviou, há mais de um ano, sobre minha crítica ao Projeto de organizar uma União Geral de anarquistas, publicado por um grupo de anarquistas russos no exterior e conhecido em nosso movimento pelo nome de ‘Plataforma’.

Conhecendo minha situação, você certamente terá compreendido porque não respondi. Eu não posso tomar parte, como gostaria, na discussão das questões que mais nos interessam, porque a censura me impede de receber publicações que são consideradas subversivas ou cartas que abordam tópicos políticos e sociais. Apenas depois de longos intervalos e por um feliz acaso, eu ouço o agonizante eco do que os companheiros dizem e fazem. Portanto, eu sabia que a "Plataforma" e minha crítica a ela haviam sido amplamente discutidas, mas pouco ou nada sabia do que havia sido dito; sua carta é o primeiro documento sobre o assunto que eu consegui ver.

Se pudéssemos nos corresponder livremente, eu lhe pediria, antes de entrar na discussão, para esclarecer suas visões que, talvez pertencendo a uma tradução imperfeita do russo para o francês, parecem para mim estar em parte alguma coisa obscura. Mas, as coisas sendo como são, responderei o que tenho compreendido, e espero que então seja capaz de ver sua resposta. Você está surpreso porque eu não aceito o princípio da responsabilidade coletiva, que você acredita ser o princípio fundamental que guia e deve guiar os revolucionários do passado, presente e futuro. De minha parte, imagino o que a noção de responsabilidade coletiva pode significar nos lábios de um anarquista. Eu sei que os militares tem o hábito de dizimar soldados rebelados ou que reagiram mal diante do inimigo, atirando neles indiscriminadamente. Eu sei que os chefes de exército não têm escrúpulos em destruir vilarejos ou cidades e massacrar uma população inteira, incluindo crianças, porque alguém tentou resistir à invasão. Eu sei que, através dos tempos, os governos têm de várias maneiras ameaçado com e aplicado o sistema da responsabilidade coletiva para colocar um freio nos rebeldes, exigir impostos etc. E compreendo que isso poderia ser um meio efetivo de intimidação e opressão. Mas como, pessoas que lutam por liberdade e justiça, podem falar de responsabilidade coletiva quando elas podem apenas estar relacionadas com a responsabilidade moral, haja ou não punições materiais em seguida?!!!

Se, por exemplo, num conflito com uma força inimiga armada, o homem ao meu lado age como um covarde, ele talvez faça mal para mim e para todos, mas a vergonha pode ser apenas dele por faltar-lhe a coragem de manter a função que escolheu para si mesmo. Se, numa conspiração, um conspirador trai e seus companheiros são presos, os traídos são responsáveis pela traição?

A 'Plataforma' diz: `Toda a União é responsável pela atividade revolucionária e política de cada membro e cada membro será responsável pela atividade revolucionária e política da União.' Pode-se conciliar isto com os princípios da autonomia e da livre iniciativa que os anarquistas professam? Eu respondo, então: `Se a união é responsável pelo que cada membro faz, como pode deixar a seus membros individuais e aos vários grupos a liberdade de aplicar o programa comum da maneira que julgarem conveniente? Como pode ser responsável por uma ação quem não possui os meios de preveni-la? Portanto, a União e através dela o comitê Executivo precisariam monitorar a ação dos membros individuais e ordenar-lhes o que fazer e o que não fazer; e uma vez que a desaprovação após o evento não isenta da responsabilidade previamente aceita, ninguém poderia fazer qualquer coisa antes de obter a permissão do comitê. E então, pode um indivíduo aceitar ser responsável pela ação de uma coletividade antes de saber o que ela fará e se ele não pode impedi-la de fazer o que ele desaprova?'

Certamente, eu aceito e apóio a visão de que qualquer um que se associa e coopera com outros por uma causa comum deve: coordenar suas ações com a de seus companheiros e não fazer nada que prejudique o ação dos outros e, portanto, a causa comum; respeitar os acordos feitos - exceto quando pretendem deixar a associação por diferenças de opinião, mudança de circunstâncias ou conflito sobre métodos escolhidos tornam a cooperação impossível ou imprópria. Assim, eu sustento que aqueles que não sentem nem praticam tais deveres têm de ser expulsos da associação.

Talvez, falando de responsabilidade coletiva, você se refira precisamente ao acordo e à solidariedade que devem existir entre os membros de uma associação. Se é assim, sua expressão significa, na minha visão, um uso incorreto de linguagem, mas isso seria apenas uma questão irrelevante de fraseologia e logo alcançaríamos a concordância.

A questão realmente importante que você levanta em sua carta diz respeito à função (´o papel´) dos anarquistas no movimento social e ao modo como querem desempenhá-la. Esta é uma questão de base, da razão de ser do anarquismo e é preciso ter bem claro o que o outro quer dizer.

Você pergunta se os anarquistas deveriam (no movimento revolucionário e na organização comunista da sociedade) assumir um papel dirigente e portanto responsável, ou se limitar a serem auxiliares irresponsáveis. Sua pergunta me deixa perplexo, porque lhe falta precisão. É possível dirigir através do conselho e exemplo, deixando as pessoas - com as oportunidades e meios de abastecer suas próprias necessidades por si mesmas - adotarem nossos métodos e soluções se estes são, ou parecem ser, melhores do que aqueles sugeridos e levados por outros. Mas também é possível dirigir assumindo o comando, ou seja, tornando-se um governo e impondo as próprias idéias e interesses através de métodos policiais.

De que maneira você quer dirigir? Nós somos anarquistas porque acreditamos que o governo (qualquer governo) é um mal, e que não é possível obter liberdade, solidariedade e justiça sem liberdade. Não podemos, pois, querer governar e devemos fazer todo o possível para impedir que outros - classes, partidos ou indivíduos - assumam o poder e tornem-se governos.

A responsabilidade dos líderes, a noção pela qual me parece que você quer garantir que a população esteja protegida de seus abusos e erros, não significa nada para mim. Quem está no poder não é verdadeiramente responsável exceto quando defrontado com a revolução. E não podemos fazer a revolução todos os dias, geralmente ela acontece depois de o governo já ter feito todo o mal que pode.

Você entenderá que eu estou longe de pensar que os anarquistas deveriam satisfazer-se em serem simples auxiliares de outros revolucionários, que, não sendo anarquistas, naturalmente aspirariam a tornar-se o governo. Pelo contrário, eu acredito que nós, anarquistas, convencidos da validade de nosso programa, devemos nos esforçar para adquirir uma enorme influência e atrair o movimento para a realização de nossos ideais. Mas tal influência deve ser obtida fazendo mais e melhor do que os outros, e será útil apenas se a obtivermos dessa forma.

Hoje, devemos aprofundar, desenvolver e propagar nossas idéias e coordenar nossas forças numa ação comum. Devemos agir com o movimento operário para preveni-lo de ser limitado e corrompido pela busca de reformas compatíveis com o sistema capitalista; e devemos contribuir para preparar uma completa transformação social. Devemos atuar com as massas desorganizadas e mesmo com os inorganizáveis, despertando o espírito de revolta e o desejo de uma vida livre e feliz. Nós devemos iniciar e apoiar todos os movimentos que tendem a enfraquecer o Estado e o capitalismo e a elevar o nível mental e as condições materiais dos trabalhadores. Devemos, em resumo, preparar e nos preparar , moral e materialmente, pelo ato revolucionário que abrirá o caminho para o futuro.

Então, na revolução, devemos ser parte enérgica (se possível antes e mais eficazmente do que os outros) na essencial luta material e dirigi-la ao limite máximo, destruindo todas as forças repressivas do Estado. Devemos encorajar os trabalhadores a apossar-se dos meios de produção (terra, minas, fábricas e oficinas, meios de transporte etc.) e estoques de bens manufaturados; organizar imediatamente, por si mesmos, uma distribuição eqüitativa dos bens de consumo, e ao mesmo tempo suprir os produtos para troca entre comunas e regiões, para a continuação e intensificação da produção e de todos os serviços úteis à população. Devemos - de todas as maneiras possíveis e de acordo com as circunstâncias e oportunidades locais - promover a associação dos trabalhadores, as cooperativas, os grupos voluntários, para evitar o aparecimento de novos poderes autoritários, novos governos, opondo-nos a eles com violência se necessário, mas acima de tudo tornando-os inúteis. E onde não houver consenso suficiente entre as pessoas e não pudermos evitar o restabelecimento do Estado, com suas instituições autoritárias e seus órgãos violentos, devemos nos recusar tomar parte ou reconhecê-lo, rebelando-nos contra suas imposições e exigindo total autonomia para nós e todas as minorias dissidentes. Em outras palavras, devemos permanecer num estado atual ou potencial de rebelião e, incapazes de vencer no presente, devemos no mínimo nos preparar para o futuro.

É isso o que você também quer dizer quanto ao papel dos anarquistas na preparação e na realização da revolução? Pelo que sei de você e de sua atuação, estou inclinado a acreditar que sim. Mas, quando vejo que na União que você apóia existe um Comitê Executivo para dar direção ideológica e organizacional para a associação, assalta-me a dúvida de que vocês também gostariam de ter, no movimento geral, um corpo central que ditaria de uma maneira autoritária o programa teórico e prático da revolução.

Se é assim, nós somos pólos separados.

Sua organização, ou seus órgãos administrativos, podem ser compostos por anarquistas mas eles apenas se tornariam nada mais do que um governo. Acreditando, em completa boa fé, que são necessários para o triunfo da revolução, eles iriam, prioritariamente, deixar claro de que estão bem colocados o suficiente e fortes o bastante para impor sua vontade. Portanto, criariam corporações armadas para a defesa material e uma burocracia para encaminhar suas decisões; e, no processo, paralisariam o movimento popular e matariam a revolução.

Foi isso, acredito, o que aconteceu com os bolcheviques.

Acredito que o mais importante não é a vitória de nossos planos, nossos projetos, nossas utopias, que em qualquer caso precisam de confirmação e podem ser modificados pela experiência, desenvolvidos e adaptados para as reais condições, morais e materiais, da época e do lugar. O mais importante é que as pessoas, homens e mulheres, percam os instintos e hábitos de rebanho, que lhes foram inculcados em milhares de anos de escravidão, e aprendam a pensar e atuar livremente. Este é o grande trabalho de libertação moral a que os anarquistas devem especialmente se dedicar.

Agradeço-lhe pela atenção que tenha dado à minha carta e, na esperança de ouvi-lo mais tarde, envio-lhe meus cordiais cumprimentos.

E. Malatesta
Risveglio (Genova), Dezembro de 1929

 


A Propósito da "Responsabilidade Colectiva"

Errico Malatesta

(Studi sociali, 10 de julho de 1930)

Traduzimos aqui abaixo uma carta de E. Malatesta ao grupo anarquista do 18° distrito urbano de Paris, escrita em Março ou em Abril passado e publicada em Le Libertaire de Paris, n° 252, de 19 de Abril, corrente ano. Com esta carta Malatesta reconfirma a sua opinião sobre o conceito de "responsabilidade colectiva" das organizações, sobre a qual então (anteriormente ao último congresso dos anarquistas franceses organizados) se fazia no Libertaire uma discussão acalorada (Nota da redacção de Studi sociali.)

* * *

Vejo uma declaração do grupo do XVIII°, em que se defende, de acordo com a "Plataforma" dos russos e com o companheiro Makhno, que "o princípio da responsabilidade colectiva" é a base toda e qualquer organização séria.

Eu já tinha dito, na minha crítica à "Plataforma" e na resposta à carta aberta recebida de Makhno, qual é a minha opinião sobre este pretenso princípio. Mas visto que se insiste numa ideia, ou pelo menos numa expressão, que me parece mais apropriada numa caserna do que num grupo anarquista, se me for permitido, espero dizer ainda algumas palavras sobre esta questão.

Os companheiros do XVIII° dizem que "os anarquistas comunistas devem tender a que a sua influência se exerça com a maior probabilidade de sucesso e não obterão tal resultado senão na medida em que a sua propaganda se desenvolva de modo colectivo, permanente e homogéneo". De acordo! Mas ao que parece, tal não ocorre; pois os companheiros lamentam que "em nome da mesma organização aos quatro cantos da França se difundem as teorias mais diversas, ao fim e ao cabo, mais opostas". Isto é muito deplorável, mas significa simplesmente que esta organização não possui um programa claro e preciso, compreendido e aceite por todos os seus membros e que no seu seio se encontram, confundidos debaixo de uma etiqueta comum, pessoas que não têm as mesmas ideias e que deveriam agrupar-se em organizações diversas ou ficarem isolados se não encontrassem quem pensasse como elas.

Se, como dizem os companheiros do XVIII°, a U.A.C.R. (3) não faz nada para estabelecer um programa aceite por todos os seus membros e para se colocar em postura de poderem agir juntos nas situações que se apresentam, se, em suma, a U.A.C.R. tem falta de preparação, de coesão, de acordo, aqui está a raiz do seu mal e é isso que é preciso remediar. E não se remediará em nada proclamando uma "responsabilidade colectiva" que, se não é submissão cega de todos à vontade de alguns, é um absurdo moral em teoria e, na prática, a irresponsabilidade geral.

Mas talvez isto tudo não seja mais do que uma questão de palavras.

Já na minha resposta a Makhno eu dizia: "Pode acontecer que, falando de responsabilidade colectiva, vós entendeis o acordo e a solidariedade que devem existir entre os membros de uma associação. E se é assim, a vossa expressão seria, a meu ver, um uso impróprio de linguagem, mas no fundo tratar-se-ia apenas de uma questão de palavras e estaríamos próximos de um entendimento".

E agora, ao ler aquilo que dizem os companheiros do XVIII° eu vejo-me em acordo substancial com a sua maneira de conceber a organização anárquica (muito longe do espírito autoritário que a "Plataforma" parecia revelar) e estou vendo confirmada a minha esperança de que sob diferenças de linguagens se encerra verdadeiramente uma identidade de propósitos.

Mas se tal é assim, porque insistir numa expressão que é contrária ao objectivo de clarificação e que é uma das causas do mal-estar provocado pela "Plataforma"? Porque não falar como todos os outros, de modo a serem compreendidos e a não criar equívocos? 

A responsabilidade moral (pois no nosso caso não pode senão tratar-se de responsabilidade moral) é individual pela sua própria natureza. Apenas o espírito de dominação, nas suas diversas manifestações políticas, militares, eclesiásticas, etc., pode ter considerado responsáveis homens por aquilo que estes não fizeram voluntariamente. 

Se entre homens que se puseram de acordo para fazer alguma coisa, algum destes, faltando ao seu compromisso, faz fracassar a iniciativa, todos dirão que é ele o culpado e portanto o responsável, e não aqueles que fizeram até ao fim tudo o que deviam fazer.

De novo, falemos como todos os outros; procuremos fazer-nos entender de todos e talvez assim encontremos menos dificuldade na nossa propaganda.



NOTAS:

1) Nestor Makhno (1889-1934), revolucionário e organizador do exército guerrilheiro na Ucrânia (1918-1921), venceu o exército branco mas foi derrotado pelo exército vermelho de Trotsky. Conseguiu escapar e passou o resto de sua vida em Paris. Foi um dos autores da "Plataforma".

2) Parece que Makhno respondeu essa carta. Um companheiro da A.C.F. (atual A.F.) britânica traduziu-a para o inglês, mas até agora ela ainda não foi publicada em lugar nenhum.

3) L'Union Anarchiste Communiste Révolutionnaire


Source: Biblioteca virtual revolucionária

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